O filme “Laranja mecânica” (1971),
baseado no romance homônimo, escrito em 1962 por Anthony Burgess, foi dirigido
por Stanley Kubrick e é uma das maiores obras do cinema do último século.
Cultuado até os dias atuais pelos apaixonados pela sétima arte, o longa-metragem
conta a história do anti-herói Alexander DeLarge (interpretado por Malcolm
McDowell), ou simplesmente Alex, um adolescente de 17 anos*¹, líder de uma
gangue de adolescentes que têm como hábito cometer atos de violência pela cidade.
Alex é retratado como um sociopata
sem escrúpulos, que estupra, rouba e espanca pessoas pelo simples prazer de propagar
a violência existente em grande escala na Inglaterra futurista ficcional
descrita no livro. Ironicamente, Alex é um jovem inteligente e adora música
clássica, principalmente Beethoven (Ludwig van, para o protagonista), citado a
todo tempo por sua nona sinfonia, obra que faz Alex deleitar-se enquanto sonha
com fantasias sobre estupros e torturas.
“Laranja mecânica” se passa em
primeira pessoa, sendo Alex o narrador. A obra explora muito bem o psicológico
perturbado do personagem, que se refere a si, no livro, como Vosso Humilde
Narrador, muitas vezes abreviado por V. H. N, e conversa com o interlocutor,
chamando-o de “irmão” e “amigo”. A trilha sonora é peça importante entre os
fatores que fazem do filme uma obra-prima. Uma das mais brilhantes cenas do
longa-metragem é feita com o recurso de stop motion, em que Alex tem relações
sexuais com duas garotas ao som da imponente passagem final da abertura da
ópera “William Tell”, de Gioachino Rossini. No livro, ainda é citado que Alex,
após as garotas fugirem de sua casa, dorme ao som de sua adorada nona sinfonia
de Beethoven.
Os membros da gangue de Alex se
comunicam pelo Nadsat, linguagem criada por Burgess repleta de gírias formadas
pela união de termos em russo e inglês. Assim, Laranja Mecânica reforça sua
idéia futurista e permite que o espectador tenha sua própria interpretação do
dialeto e dos diálogos da obra. Contribuem também para o ambiente futurista a
variedade de cores fortes nos espaços públicos freqüentados pelo protagonista e
a promiscuidade, marcada por quadros de mulheres nuas, objetos de formato
fálico e seios representados em toda parte. A nudez é explícita no filme, sendo
recorrentes cenas de estupro em que os personagens aparecem nus, sem censura alguma.
Por ser impossível manter o enredo
do filme completamente fiel ao do livro, algumas das aventuras noturnas de Alex
e seus druguis (amigos, em nadsat) são ignoradas no filme. Ainda assim, os
primeiros 20 minutos do longa permitem que o espectador compreenda como Burgess
criou o caótico cenário de sua Inglaterra ficcional. Em uma das aventuras
retratadas, Alex é pego após invadir um spa e assassinar sua dona. Então, Alex
é condenado a 14 anos de prisão. Nos livros, a obra divide-se em três partes,
com sete capítulos cada, e este é o ponto de transição entre a primeira e a
segunda.
Decorridos dois anos, Alex é
selecionado para uma experiência do governo que tem como intenção curar os
prisioneiros mais violentos em poucas semanas e reduzir a superlotação dos
presídios do país: o tratamento (ou método) Ludovico. Aqui se encontra uma
distorção entre os enredos do livro e do filme. Na literatura, Alex é
selecionado para este tratamento após espancar um companheiro de cela até a
morte, enquanto no longa-metragem, Alex induz o ministro que implantou o
tratamento a escolhê-lo, para ser liberado da prisão mais rapidamente.
O tratamento Ludovico consiste em
uma aplicação prática das idéias behavioristas descritas no condicionamento
operante por B. F. Skinner. O prisioneiro recebe a injeção de uma droga que o
faz passar por uma experiência de quase-morte e, enquanto isso, é obrigado a
assistir a filmes que retratam situações de transgressão da lei como
assassinatos, torturas, estupros e assaltos. Assim, o corpo do paciente liga a
violência ao mal-estar físico causado pela droga que lhe foi injetada, e se
torna indisposto na presença da violência, impedindo o prisioneiro de cometer
novos crimes. É possível também relacionar o método Ludovico com a teoria da
agulha hipodérmica, a primeira do Mass Communication Research, pelo fato de a
droga ser inoculada no paciente, assim como a teoria prevê a mensagem sendo
inoculada na massa pelo meio de comunicação.
Após passar pelo método Ludovico,
Alex é liberado da prisão, e assim se dá o fim da segunda parte do livro, que
tem em sua terceira e final parte com a narração de como o protagonista segue
sua vida após passar pelo traumático método de reabilitação social.
Existem muitas críticas à sociedade
moderna em Laranja Mecânica. A desestruturação da família é uma delas. Os pais de Alex são
vistos poucas vezes no filme e são retratados como figuras sem nenhum poder. A
mãe, desequilibrada, é facilmente ludibriada pelo filho e, após a prisão de
Alex, é vista chorando em todas as cenas. O pai, ausente, não aparenta ter
qualquer controle da estrutura familiar e também é enganado pelas mentiras de
Alex, que alega que suas saídas noturnas são para trabalhar.
A Igreja Católica é outra instituição
importante citada no filme. Em uma passagem do filme, Alex é visto torturando
Jesus. Durante a passagem do protagonista pela prisão, uma figura retratada
diversas vezes é o padre que prega na capela do local. Este personagem é
debochado durante os cultos, também se deixa levar pela conversa de Alex, que o
faz contar sobre o método Ludovico contra sua vontade, e tem sua opinião
contrária à tortura do método rejeitada por todos.
A mídia também é retratada de modo
muito crítico no filme. São constantes as cenas de pessoas lendo jornais e
revistas, e a opinião pública é fortemente controlada pelos veículos de
comunicação. Uma passagem que marca isso é quando o Ministro do Interior, de
maneira discreta, implora para que Alex o perdoe pelo sofrimento causado pelo
tratamento Ludovico, que também o deixou impossibilitado de escutar a nona
sinfonia de Beethoven, e permita que os jornais publiquem uma fotografia
selando a amizade entre os dois.
A sociedade futurística da Laranja
Mecânica acerta em cheio os prognósticos feitos por Anthony Burgess. A vida de
aparências da sociedade moderna é criticada fortemente, mesmo que de maneira
metafórica. A liberdade escancarada da população transforma-se em falta de
privacidade e torna o povo refém de sua própria independência. Essa conclusão é
vista na passagem do filme que o pai de Alex diz para o filho que ele é “uma
vítima da modernidade”.
Assim como em 1984, de Orwell, e
Admirável Mundo Novo, de Huxley, obras futuristas de período semelhante, a
sociedade futurística criada por Burgess e retratada com brilhantismo por
Kubrick merece toda a aclamação que tem até os dias atuais. A Laranja Mecânica
visionária une a crítica social ao romance com uma linguagem simples e capaz de
transmitir sua mensagem para todos, sem perder jamais a primazia, e mantém-se
após décadas como uma obra atual e indispensável para os apaixonados pela
literatura e/ou pelo cinema.
*¹- na literatura, Alex possui somente 15 anos. Para amenizar
a polêmica em torno da violência explícita, no filme, o diretor optou por fazer
o personagem um pouco mais velho